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HISTÓRIA DO CUBA LIVRE MISTURA EXPLORAÇÃO SEXUAL COM APROPRIAÇÃO CULTURAL


Ah, o Cuba Libre. Aquela mistura fácil e adocicada de rum com refrigerante de cola que marcou a iniciação alcoólica de gerações — às vezes motivada pela curiosidade que brotou na aula de História da véspera.
Segundo a versão mais difundida, o drinque surgiu, como o nome antecipa, em Cuba, em 1900. Cinco anos antes, em 1895, o poeta José Martí e os generais Máximo Gómez e Antonio Maceo deram início à guerra de independência, a fim de livrar a ilha do domínio da Espanha.
Martí foi morto em uma emboscada e virou o maior herói nacional do país. Em 1898, os Estados Unidos entraram no conflito, derrotaram os espanhóis e governaram Cuba até 1902, quando, enfim, a ilha conquistou a independência.

Xilogravura retrata a Guerra de Independência de Cuba (1895-98), momento em que surge o slogan “Viva Cuba Libre”

Uma independência que veio com uma polêmica nota de rodapé: os EUA teriam direito de intervir na política interna cubana até 1934 e ganharam uma base naval e a prisão de Guantánamo. Mas essa é outra história.
Então, lá estamos em 1900, na ensolarada Havana, celebrando a derrota dos espanhóis colonialistas. Em um bar da capital, um oficial americano, um certo capitão Russell, pediu uma dose de rum misturada com suco de limão e Coca-Cola para celebrar a união dos dois países americanos com suas bebidas típicas. Brindou aos convivas: “Por uma Cuba livre!”. Todos brindaram e o drinque caiu nas graças do povo.

Cuba Libre

Em 1965, um cubano chamado Fausto Rodríguez corroborou a história. Ele afirmou, sob juramento, que era o menino de 14 anos que trabalhava com o capitão Russell.
É uma anedota que se encaixa muito bem para explicar a história agridoce da independência de Cuba, que se livrou de uma potência decadente para cair nas mãos de outra, emergente. Mas, se olharmos com um pouquinho de atenção, o episódio é redondinho demais.
“Por uma Cuba livre”? Todos brindando? Daqui a pouco aparecem os Três Amigos, o Zé Carioca abraça o capitão Russell, as pessoas dançam enquanto sobem os créditos da Disney.

Cartaz da Bacardi

É possível que seja verdade, não sejamos tão cínicos. Mas é difícil. Para começo de conversa, o depoimento de Rodríguez foi divulgado em um espaço publicitário na revista “Life”. Quem pagou o anúncio foi a fabricante do rum Bacardí. E o próprio Rodríguez era diretor de publicidade da empresa. Ele pode ter sido um destemido adolescente que presenciou o nascimento de um drinque superpopular e depois fez carreira justamente na empresa que produz o principal ingrediente dessa receita? Pode. “Mas esses fatos tornam o documento apenas um pouco mais crível do que um homem vestido de Papai Noel dizer a você que ele é, de fato, Papai Noel”, resume o jornalista Wayne Curtis no livro “And a Bottle of Rum” (“E uma garrafa de rum”, sem edição brasileira).
Além disso, a Bacardí, uma empresa familiar fundada em Santiago de Cuba em 1862, deixou o país em 1960, depois da Revolução Cubana. O grupo, até hoje sediado em Bermuda, apoiou os revolucionários no início, mas rompeu com Fidel Castro quando o novo regime confiscou empresas e propriedades, segundo o jornalista Tom Gjelten no livro “Bacardí and the Long Fight for Cuba” (“Bacardí e a longa luta por Cuba”, também sem versão brasileira). Apenas cinco anos depois, ela lançou a narrativa da Cuba livre com a suposta origem do drinque.

Cuba Libre com Bacardi

A “versão oficial” que a Bacardí defende hoje, segundo sua assessoria de imprensa no Brasil, diz que o coquetel surgiu sem autores específicos, apenas com cubanos e americanos misturando Bacardí, Coca-Cola e limão e celebrando alegremente o fim da guerra. Mas em 2020 a companhia bancou a história do Capitão Russell com matérias patrocinadas em sites especializados.
Não há nada de ilegal nem de antiético nisso. Mas não quer dizer que qualquer uma das duas seja a versão mais aceita pelos estudiosos do assunto.
ENTÃO, QUAL É A ORIGEM DO CUBA LIBRE?
Símbolo máximo americano, a Coca-Cola foi criada pelo farmacêutico John Pemberton em Atlanta, em 1886. Já era conhecida em Cuba no início do século 20, então é provável que a mistura com rum, o destilado nacional cubano, tenha surgido nessa época, mas sem que a guerra de independência tenha servido, necessariamente, de pano de fundo.
Já a popularização e o nome, cuba libre ou rum e Coca, vieram mais tarde. É aí que a história fica mais interessante.

Cuba Libre

Na década de 1930, submarinos alemães assediavam navios transportando petróleo e bauxita na América do Sul e no Caribe, o que americanos e britânicos encaravam como uma ameaça à sua soberania. Em 1940, o Reino Unido e a Alemanha eram inimigos na Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos ainda não haviam entrado no conflito, mas colaboraram com os aliados ingleses enviando 50 navios e 1 milhão de rifles. Em troca, ganharam uma licença para criar uma linha de defesa ao longo das colônias britânicas no Caribe.
O impacto nessas ilhas foi tremendo. Praticamente da noite para o dia, lugares como Trinidad, que tinha 400 mil habitantes, receberam um fluxo de 130 mil soldados, oficiais, marinheiros etc. As mudanças no cotidiano e as trocas culturais eram inevitáveis. Entre tantas novidades, os americanos descobriram o rum de Trinidad e Tobago, cuja dose custava 25 cents (contra 30 cents por um copo de cerveja).

Slogan “viva cuba libre” em muro de trinidad, cuba

Bebidas fortes a preços muito baratos são uma receita histórica para a desordem. O rum é um destilado com pelo menos 35% de graduação alcoólica, então a quantidade de bêbados na rua virou um problema para Trinidad e para as Forças Armadas. Bares precisaram ser fechados à tarde, um toque de recolher foi instaurado a partir de 23h e o preço da cerveja caiu para 10 cents na base aérea. Tudo para diminuir a sede de rum entre os americanos.
Quando os EUA entraram na guerra, em 1941, a Coca-Cola foi junto, de cabeça, em um enorme esforço de patriotismo e marketing. A companhia se empenhou em estar presente na vida dos soldados: onde quer que estivessem, eles poderiam comprar uma garrafa pelo mesmo preço que ela custava na Primeira Guerra, mais de 20 anos antes. Foi um sucesso: a empresa vendeu cerca de 10 bilhões de refrigerantes dessa forma ao longo da guerra.
O estouro de popularidade da Coca encontrou no rum a companhia ideal no calor caribenho. A combinação estava feita, sacramentada no paladar e difundida entre companheiros longe de casa. Faltava só algo para colar de vez essa figurinha no álbum da cultura popular. Como uma música.

“Vivo em um país livre” em um mural de Havana

Em 1906, o famoso músico trinitário Lionel Belasco compôs um calipso chamado “L’Année Passée”, que falava de uma jovem do campo, de boa família, que se apaixonou por um sujeito meio canalha e acabou na prostituição. Décadas depois, durante a guerra, outro cantor da ilha, que tinha o sugestivo nome Lord Invader, adaptou a música para narrar as aventuras dos americanos. Parte da letra, em inglês, dizia o seguinte:
“Eles compram rum e Coca-Cola,
Vão lá em Point Koomhana
Tanto a mãe quanto a filha
Trabalham para os dólares dos ianques.”
Ignorando a crítica social, os americanos gostavam da música, assim como os trinitários. Em uma turnê em Trinidad e Tobago, o artista Morey Amsterdam ouviu a versão de Lord Invader, “Rum and Coca-Cola”, gostou e decidiu levá-la aos EUA. Deu aquela suavizada na letra e tirou referências a prostituição.

Viva Cuba Libre” Imagem: David Silverman/Getty Images

A nova canção falava do romance entre um soldado e uma nativa e foi um sucesso assombroso nas vozes do grupo The Andrews Sisters. Com um sotaque caribenho falso, as cantoras levaram “Rum and Coca-Cola” ao topo da Billboard por dois meses, em 1945.

(Fonte: www.uol.com.br)

Elevada ao status de megahit internacional, a música virou caso de justiça, porque Amsterdam achou que tudo bem adaptar a composição sem pagar direitos autorais. Ele acreditava que, por se tratar de um calipso, “L’Année Passée” era uma canção folclórica, de domínio público. Em 1947, um juiz determinou que Amsterdam roubou a música e que todos os direitos deveriam ser pagos a Belasco, então com 66 anos.
A história do cuba libre não fala tanto de harmonia e paz entre povos amigos. Em vez disso, é uma saga de colonialismo, misoginia, exploração sexual e apropriação cultural. Mas que terminou bem para Belasco. Um brinde a seu calipso, então, porque o drinque combina bem mais com música do que com guerra. (Fonte: www.uol.com.br)
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