A BÍBLIA TEMIDA OU AMADA ? -Pelo REV. ISRAEL LEAL
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O século XVI foi o período das diversas reformas cristãs e a questão da Bíblia estava bem próxima da questão do poder. Para delimitar instâncias de ação, legitimar ou desautorizar hierarquias, governos e processos políticos, advogava-se a autoridade das Escrituras Sagradas, o que se mostrou um procedimento mais complicado do que aparentava. A Bíblia não apresenta em si mesma instruções para a leitura e interpretação, o que acarretou o trabalho para diversos grupos divergentes de criarem o seu próprio manual para o usuário. Desse modo, a cisão ocorrida no seio da chamada Igreja Católica, produziu não apenas um grupo dissidente, mas diversos grupos que divergiam em muita ou pouca coisa, mas sempre o suficiente para não conseguirem se entender.
Os governos da época eram em sua imensa maioria autocráticos e as reflexões no livro O Príncipe, de Maquiavel, nos oferecem uma ideia do problema da autoridade. Em um certo capítulo, pretende responder a pergunta se o príncipe deve ser amado ou temido. A resposta foi que o ideal seria ser amado e temido, e ainda mais temido do que amado. Não deveria nunca ser odiado, porque assim ficaria praticamente impossível de se manter o principado. Por extensão, podemos admitir que a autoridade da Bíblia consistiria em ela ser amada e temida, e mais temida do que amada.
O temor pela Bíblia acompanhou o processo europeu de colonização em todos os outros continentes. A Bíblia foi usada para justificar domínio e para garantir a submissão de indígenas, africanos e asiáticos. Surpreendentemente, foi muitas vezes redescoberta por esses mesmos povos submetidos e ressignificada para uma busca por liberdade e dignidade. Isso mais uma vez reforça a complexidade da Bíblia em sua interpretação e aplicação. Textos foram lidos tanto para autorizar exploração e opressão, como para expressar direitos.
Na recente história do Brasil, há o entendimento de que a conscientização do camponês das Ligas Camponesas, nos anos 1950 e 1960, foi feita também pela Bíblia, especialmente pelos textos proféticos, em que a injustiça e a opressão são denunciadas de forma mais contundente. O Rev. João Dias de Araújo meu mestre de Teologia Sistemática no STBNe em Feira de Santana – Ba., gostava de contar a história de que no começo da ditadura militar ele trabalhava junto a D. Helder Câmara, e como pastor estudava os profetas com os camponeses de Pernambuco. Então se espalhou entre algumas pessoas do serviço secreto de que alguns “comunistas” estavam “fazendo a cabeça” dos agricultores. Um tal de Isaías, um tal de Jeremias, um tal de Amós, um tal de Miquéias e o pior deles era o líder, um tal de João Dias.
Por outro lado, durante séculos, proprietários e traficantes deu escravos encontravam nos textos bíblicos a justificativa “sagrada” para manter o processo de escravidão e para se beneficiarem com o mesmo. Do mesmo modo, a inferioridade da mulher, do índio e do negro, era tratada com bases bíblicas. Mulheres, negros e índios lutaram por um olhar diferente para os textos e conseguiram conquistas significativas na direção da igualdade, ainda que essas conquistas não tenham se estendido como deveriam. Ou sacerdócio feminino, por exemplo, nunca foi legitimado por várias igrejas, incluindo a grande Igreja Católica.
Novamente, é a questão da Bíblia ou da autoridade da Bíblia que nos coloca nesses vários impasses. Desejaria que a Igreja do século XXI desenvolvesse em sua relação com a Bíblia, uma atitude mais de diálogo do que de submissão literal e acrítica. O modelo de governo democrático de hoje nos desafia a pensar uma relação mais dialógica com as nossas Sagradas Escrituras. Nesse modelo a Bíblia nunca poderia ser temida ou odiada, apenas amada, simplesmente amada. O encontro com um Deus do lado do oprimido e do que sofre, nunca do opressor nem de quem causa sofrimentos evitáveis, pode ser mediado por uma Bíblia que pode assim se apresentar de modo encantador. Para isso, é preciso tirar o peso que os manuais de instrução colocam sobre a Bíblia.
A autoridade da Bíblia deve sempre ser pensada no diálogo com outras autoridades. A autoridade da vida, a autoridade da existência, a autoridade da história, a autoridade do amor, por exemplo. Nem todo diálogo é harmônico; às vezes se estabelece o conflito. Mas se o diálogo é autêntico, chegam-se a caminhos satisfatórios, às vezes inesperados. Mas, essa seria uma forma da Igreja do século XXI ter uma Bíblia mais amada do que temida. *(Rev. Israel Leal Teólogo/ Lincec. História/ Acadêmico de Direito)
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